A crise estrutural do futebol feminino brasileiro voltou ao centro do debate nesta semana após a BandNews FM dedicar sete minutos de seu principal programa em São Paulo ao tema, um espaço raro em uma mídia que historicamente trata a modalidade de forma periférica. O ponto de partida foi o encerramento das atividades do time feminino do Fortaleza, anunciado pela SAF do clube, mas a discussão rapidamente escancarou um problema mais profundo, que envolve clubes, imprensa e, sobretudo, a CBF.
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A decisão do Fortaleza chama atenção não apenas pelo simbolismo, mas pelo contexto. Em 2025, o clube conquistou o Campeonato Cearense feminino, garantiu vaga na elite nacional e viveu o melhor momento de sua história na modalidade. Ainda assim, optou por encerrar o projeto, assumindo como consequência uma punição esportiva pesada: dois anos fora das competições nacionais organizadas pela CBF. A justificativa oficial foi a busca por equilíbrio financeiro e sustentabilidade global da operação, argumento recorrente quando o corte atinge justamente o futebol praticado por mulheres.
O caso não é isolado. Em 2022, o Ceará tomou decisão semelhante após o rebaixamento do time masculino. O roteiro se repete: a crise do futebol dos homens recai sobre a modalidade feminina, tratada como despesa acessória, mesmo quando apresenta resultados esportivos superiores. A lógica expõe uma hierarquia clara dentro dos clubes, onde o futebol feminino raramente é visto como projeto estratégico de longo prazo.
Nesse cenário, o Flamengo aparece frequentemente como alvo central das críticas. O clube ganhou projeção após a repercussão de uma reportagem de Renata Mendonça, que questionou as condições oferecidas ao time feminino rubro-negro, incluindo viagens de ônibus para jogos decisivos e a escolha de estádios com pouca capacidade de público. A discussão, legítima em vários pontos, acabou direcionada quase exclusivamente ao clube carioca, deixando em segundo plano o papel da entidade que organiza a competição.
Os dados ajudam a entender a distorção. Até recentemente, o regulamento do Campeonato Brasileiro Feminino previa que viagens de até 700 quilômetros fossem realizadas de ônibus, com custos bancados pela CBF. Apenas deslocamentos superiores a essa distância seriam feitos de avião. A regra vale para todos os clubes, não apenas para o Flamengo. Em partidas decisivas, inclusive de mata-mata, o padrão se manteve. A crítica à escolha do transporte, portanto, esbarra em uma responsabilidade que é estrutural e recai sobre uma confederação bilionária, principal responsável pelo fomento da modalidade no país.
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Isso não exime os clubes de responsabilidade. O Flamengo poderia, como outros poderiam, complementar a logística e oferecer melhores condições em jogos específicos. A discussão, porém, perde profundidade quando ignora o desenho do campeonato, os horários impostos para as partidas e a ausência de uma estratégia nacional de divulgação. Jogos marcados para 10h da manhã, 11h ou no meio da tarde em dias úteis afastam público dos estádios e reduzem a audiência televisiva, um problema que raramente entra no debate público.
O tratamento desigual também aparece quando se observa o clube mais vitorioso do futebol feminino brasileiro. O Corinthians, referência esportiva da modalidade, arrecadou cerca de 20 milhões de reais apenas em premiações na temporada de 2025. Mesmo assim, jogadoras relataram atrasos no pagamento de bonificações e premiações prometidas. Parte do dinheiro simplesmente desapareceu no caminho, segundo denúncias publicadas pelo Meu Timão. O caso reforça que o problema não está restrito a um clube específico, mas a uma cultura de gestão que subordina o futebol feminino a decisões tomadas sem transparência.
A jornalista espanhola Virtudes Sánchez, que trabalhou no Flamengo e acompanhou de perto diferentes projetos no país, sintetizou bem a questão ao afirmar que não é possível responsabilizar um único clube pela precarização de toda uma modalidade. Segundo ela, há interesses cruzados na indústria do futebol, disputas contratuais e falhas graves de apuração jornalística que acabam direcionando o debate para atalhos fáceis, muitas vezes personificados em clubes de maior visibilidade.
O episódio envolvendo o CFZ, centro de treinamento ligado a Zico, é emblemático. Imagens de dias distintos foram usadas como se retratassem uma rotina de abandono, sem visita ao local ou checagem presencial. O resultado foi um debate contaminado por acusações exageradas, deslocando o foco do que realmente importa: a falta de um projeto nacional consistente para o futebol feminino.
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Enquanto isso, a CBF segue praticamente incólume. Pouco se discute o calendário irregular, a ausência de um plano robusto para as categorias de base, a falta de campanhas permanentes de divulgação e o subaproveitamento de ícones como Marta, maior jogadora da história do futebol feminino. Em um país que sediará uma Copa do Mundo, a modalidade ainda depende de esforços pontuais e da boa vontade de dirigentes, em vez de políticas estruturais.
O que a BandNews fez ao dedicar sete minutos ao tema deveria ser regra, não exceção. O debate precisa sair do clubismo, abandonar simplificações e alcançar quem realmente define as condições do futebol feminino no Brasil. Sem isso, novos Fortalezas surgirão, projetos continuarão sendo encerrados e a modalidade seguirá pagando a conta de um sistema que insiste em tratá-la como secundária.
Os problemas de apuração na matéria de Renata Mendonça sobre o futebol feminino do Flamengo e o CFZ
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Por Tulio Rodrigues (@PoetaTulio)
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