José Boto, comunicação falha e os riscos de tratar o Flamengo como vitrine
As entrevistas concedidas por José Boto ao longo de 2025 passaram a ocupar espaço recorrente no debate sobre o Flamengo. O diretor de futebol rubro-negro, contratado no início da temporada, voltou a falar com a imprensa europeia em diferentes contextos, primeiro durante o Mundial de Clubes da FIFA, nos EUA, depois em um podcast português. O conteúdo dessas falas, mais do que eventuais revelações, expôs uma linha de pensamento que gerou desconforto interno e estranhamento externo.
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Apresentado fora do Brasil como um dirigente “que ganhou tudo”, Boto passou a ser tratado como peça central de um sucesso que antecede em anos a sua chegada. Para quem acompanha minimamente o futebol brasileiro, a narrativa soa deslocada. O Flamengo figura entre os principais candidatos a títulos nacionais e continentais desde 2019, atravessou trocas de treinadores, reformulou elencos e manteve protagonismo mesmo antes da atual gestão do departamento de futebol. Atribuir esse cenário a poucos meses de trabalho de um dirigente não apenas distorce a realidade como minimiza o papel de técnicos, jogadores e estruturas já consolidadas.
Chamou atenção, também, a forma como o diretor passou a ser vinculado a um suposto assédio de clubes europeus. A ideia de uma disputa intensa pelo seu nome soa exagerada. Se gigantes como Real Madrid, Bayern de Munique ou Barcelona realmente demonstrassem interesse, a saída seria imediata. Não é o caso. O mais plausível é que eventuais sondagens partam de mercados secundários, incapazes de oferecer o mesmo peso esportivo, financeiro e simbólico que o Flamengo representa hoje. A insistência nesse tipo de narrativa reforça um velho vício: a supervalorização automática do futebol europeu, mesmo quando comparado a clubes claramente menores em expressão atual.
Esse traço ficou ainda mais evidente em declarações sobre Filipe Luís. Em entrevista ao diário As, da Espanha, Boto foi questionado sobre o potencial do treinador rubro-negro e respondeu que, após mais um ano no Flamengo, ele estaria pronto para a Europa. A frase, aparentemente inofensiva, entra em choque direto com o planejamento do próprio clube. O Flamengo trabalha para renovar com Filipe Luís até dezembro de 2027, apostando em um projeto de médio e longo prazo, algo raro em sua história recente.
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A permanência do treinador já carrega peso simbólico. Filipe Luís igualou Vanderlei Luxemburgo como um dos poucos técnicos a iniciar e concluir uma temporada completa no clube desde 2011. Caso cumpra um ciclo de três anos, entrará em um território quase inexplorado no Flamengo moderno. Ao tratar o clube como etapa intermediária para o mercado europeu, o diretor transforma o projeto em vitrine e contradiz a ideia de continuidade que o próprio departamento de futebol defende.
O incômodo cresce quando o discurso se repete. Em outras entrevistas, Boto voltou a abordar o ambiente do futebol brasileiro como excessivamente pressionado, quase incompatível com o desenvolvimento de jovens. O exemplo citado foi o zagueiro João Victor, de 18 anos, apontado pelo próprio dirigente como alguém com potencial para ser “top” na Europa em cinco ou seis anos, mas, ao mesmo tempo, tratado como jogador difícil de ser aproveitado no Flamengo devido às críticas sofridas.
A contradição salta aos olhos. Se há projeção internacional, por que não há espaço técnico no clube campeão da América? Ao tornar pública essa avaliação, o diretor praticamente coloca o atleta na prateleira do mercado, fragilizando sua posição interna e, paradoxalmente, diminuindo seu valor esportivo imediato. Em vez de proteção, a fala expõe.
A história recente do Flamengo oferece exemplos claros de que o caminho não é linear. João Gomes estreou profissionalmente em 2020, teve bons momentos, perdeu espaço, assistiu à final da Libertadores de 2021 da arquibancada e, um ano depois, tornou-se titular absoluto e peça-chave antes de ser negociado. Wesley passou por críticas severas, oscilou, resistiu à pressão e terminou valorizado, convocado para a seleção e vendido por cifra expressiva. Em nenhum desses casos, o clube tratou o jovem como ativo descartável no primeiro tropeço.
A pressão sobre atletas jovens não é exclusividade brasileira. Basta lembrar o retorno conturbado de Jorge Jesus ao Benfica, as críticas recentes a Xabi Alonso no Real Madrid ou os episódios envolvendo Upamecano no Bayern e Sancho no Manchester United. Nem mesmo Vinícius Júnior escapou. A diferença é que, nesses contextos, dirigentes raramente reforçam publicamente a ideia de que o clube não é o lugar ideal para errar e evoluir.
O tom adotado por Boto em entrevistas também levanta outra questão sensível: a comunicação. O dirigente acumula méritos em contratações e decisões estruturais, mas tem reiterado falas que geram ruído desnecessário. O episódio envolvendo Pedro, ainda no meio da temporada, já havia acendido um alerta. As declarações recentes ampliam esse sinal. Não se trata de censura, mas de compreensão do cargo ocupado. O diretor de futebol fala sempre em nome do Flamengo, mesmo quando acredita estar se expressando como indivíduo.
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Em um cenário de conquistas, o impacto é diluído. O clube venceu, empilhou títulos e manteve estabilidade. Em momentos de crise, porém, cada palavra retorna como combustível. O histórico rubro-negro mostra que isso acontece com frequência. O que hoje é tratado como detalhe vira munição quando os resultados não acompanham.
José Boto foi contratado para qualificar processos, profissionalizar decisões e elevar o nível do debate interno. Parte desse desafio passa, inevitavelmente, pela forma como o Flamengo se comunica com o mundo. Pensar é legítimo. Dizer tudo, nem sempre. No maior clube em que já trabalhou, o silêncio estratégico pode ser tão valioso quanto qualquer contratação bem-sucedida.
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Por Tulio Rodrigues (@PoetaTulio)
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