“A Reinvenção do Flamengo”: muito futebol, pouca política e as lacunas deixadas pelo documentário

Tulio Rodrigues

No último dia 22, o SporTV, em coprodução com a Beyond Films, lançou o documentário A Reinvenção do Flamengo. Dividido em quatro episódios, a sinopse promete contar os bastidores da disputa pela presidência do clube nos últimos 10 anos. Porém, a tentativa de revisitar os meandros políticos não foi feita de maneira profunda.


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Cabe elogiar a qualidade da fotografia e dos arquivos, que deram ao espectador a oportunidade de ver momentos históricos dos últimos anos. No entanto, o problema está no roteiro, na maneira como a história foi contada. Alguns arcos narrativos são abertos, mas não são concluídos, como o dos Esportes Olímpicos.

No primeiro episódio, o filme mostra que, logo nos primeiros meses da gestão de Eduardo Bandeira de Mello, em 2013, uma das ações para diminuir os gastos foi o fim da equipe adulta de ginástica olímpica e a demissão de diversos atletas de renome em outros esportes. O assunto não é mais abordado, e as conquistas recentes de Rebeca Andrade e da equipe nas Olimpíadas de 2024 (um ouro, duas pratas e um bronze), assim como os títulos mundiais de basquete em 2014 e 2022, não são citados. Essas informações mostrariam, como de fato aconteceu, que a reestruturação também se estendeu a outras modalidades além do futebol.

O primeiro episódio foi o melhor. Ele começa mostrando como estava o clube antes de 2013: dívida impagável, salários atrasados, lutas contra o rebaixamento, crises no futebol, política conturbada… Inclusive, o filme foi alvo de repúdio por parte do Conselho de Grandes Beneméritos, que alegou desrespeito aos dirigentes mais antigos, como se o clube tivesse sido refundado após Bandeira de Mello vencer a eleição. No entanto, esse episódio foi o que mais se aprofundou nos bastidores da formação da histórica Chapa Azul em 2012, ainda que tenha deixado de lado algumas informações importantes, algo que se repetiu nos episódios seguintes.

Landim, Bandeira, Wallim e Bap. Personagens principais do documentário
Landim, Bandeira, Wallim e Bap. Personagens principais do documentário. Imagem: Reprodução/Globoplay
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Ao tratar da eleição de 2012, o documentário lembra que havia um movimento de oposição — fragmentada na ocasião — contra Patrícia Amorim, candidata à reeleição, mas não menciona que, naquele pleito, seis candidatos inscreveram chapas: a própria presidente, Wallim Vasconcellos, Lysias Itapicurú, Jorge Rodrigues, Maurício Rodrigues e Ronaldo Gomlevsky. Na apresentação do resultado, apenas foram informados os votos dos dois principais protagonistas, ignorando a chapa Rosa, que contou com o apoio de Lysias e Maurício Rodrigues e foi encabeçada por Jorge Rodrigues. Faltou mostrar quem se destacava na oposição à mandatária.

Patrícia Amorim. Imagem: Reprodução/Globoplay

O mesmo ocorreu no pleito de 2015. Cacau Cotta, também candidato, é citado apenas na proclamação do resultado, mostrada em uma passagem de um repórter, o que dá a impressão de que a eleição teve apenas a participação de Wallim e Bandeira. Aliás, o conflito entre os membros originais da Chapa Azul de 2012 é bem contextualizado, mas isso não acontece com o racha entre Landim e Bap em 2024, que foi determinante para o cenário da última eleição. Já o processo eleitoral de 2018 foi reduzido apenas aos números da chapa Roxa e de Ricardo Lomba. Marcelo Vargas e Peruano ficaram de fora, assim como os detalhes e contextos daquela época.

O aspecto financeiro é bem explicado, destacando os saltos que o clube deu nos últimos 12 anos, com uma breve citação ao Profut — programa de regularização de dívidas dos clubes de futebol com o Governo Federal. No entanto, o trabalho jurídico, especialmente nos dois mandatos de Eduardo Bandeira de Mello, foi ignorado. O Flamengo saiu de 500 ações trabalhistas para 52, deixando o Ato Trabalhista com saldo a receber e mais de R$ 130 milhões de reais pagos.

O Centro de Treinamento, projeto colocado em prática na gestão de Bandeira, só é citado quando se fala da tragédia de 2019. O primeiro módulo, inaugurado em 2016, sequer é mencionado, apenas o segundo, inaugurado no fim de 2018. Cabe ressaltar que o Ninho do Urubu era uma das prioridades daquela gestão, a materialização do sucesso administrativo do Flamengo, já que não houve grandes conquistas na segunda gestão de Eduardo.

Eduardo Bandeira de Mello. Imagem: Reprodução/Globoplay

Sobre a tragédia que vitimou 10 crianças em 2019, os entrevistados (dirigentes do clube) não abordam as questões mais sensíveis, como os aspectos legais para o pernoite dos garotos naquela estrutura e a parte jurídica atual. Quem tocou na ferida foram os jornalistas que participaram da cobertura. Nem a CPI da ALERJ, que chegou a pedir o indiciamento de nove pessoas por homicídio culposo e denunciou o tratamento negligente com as famílias das vítimas, é citada.

O episódio três, que abre com o tema, apresenta uma escolha errada de narrativa. No fim desse arco, ainda aos nove minutos, há uma fala de Landim sobre o tema, seguida por um corte seco e, de repente, a transição para os grandes investimentos em contratações e conquistas esportivas daquele ano. A maneira como a fala de Landim é usada como gancho para falar dos títulos sugere que os resultados esportivos serviram como superação da tragédia. Aqui, ou foi uma escolha de roteiro ou uma decisão do editor. O corte seco foi um erro tanto para a obra quanto para a imagem do próprio presidente, pois, dependendo do contexto de sua fala, soa como insensibilidade com a tragédia, as vítimas e seus familiares — algo já criticado pelos jornalistas e ídolos do clube entrevistados.

Foi algo muito triste, mas a gente teve que acordar todo dia, levantar a cabeça, trabalhar e tentar fazer o melhor. Acho que conseguimos, pelo menos pelo lado esportivo, ter energia e força para continuar trabalhando e fazer o ano de 2019 que acabamos tendo — disse Landim. A fala é imediatamente sucedida por um corte seco e uma música de ação, com imagens dos jogadores sendo apresentados pelo Flamengo em 2019.

Rodolfo Landim. Imagem: Reprodução/Globoplay

A forma como o clube lidou com os pais e mães dos atletas foi determinante para aumentar a rejeição a Rodrigo Dunshee, responsável pela parte jurídica e escolhido por Landim para concorrer na eleição de 2024 — foco do documentário. No entanto, o candidato da situação só aparece no fim do quarto episódio, o que não faz sentido, pois ele deveria ser um dos protagonistas da história do último pleito. O foco ficou em Bap e Landim, mas sem grande aprofundamento.

O documentário não falha no arco narrativo do futebol. A produção traz a jornada do herói ao contar como o Flamengo saiu da piada do cheirinho, em 2016, 2017 e 2018, para se tornar um time multicampeão entre 2019 e 2024, com dois Brasileiros, duas Libertadores e duas Copas do Brasil. Se esse fosse o foco do filme, a narrativa teria sido melhor justificada, contando a história das grandes conquistas, tendo como pano de fundo as realizações fora de campo.

O único aspecto negativo nesse ponto é a abordagem das inúmeras trocas de treinadores sob o comando de Rodolfo Landim, um fator determinante no debate do último pleito. Com as mudanças, o clube gastou cerca de R$ 50 milhões em multas, evidenciando problemas na gestão do departamento. O tema não é desenvolvido, mas deveria, já que, segundo a sinopse, o foco é a “reveladora disputa pela presidência do Flamengo nos últimos 10 anos”.

Sobre os bastidores, a obra parece mostrar que a disputa entre os membros originais da Chapa Azul de 2012 se deu mais por picuinhas pessoais do que por divergências de gestão e visões administrativas — especialmente em 2024, quando Landim não quis indicar Bap como sucessor por acreditar que ele mudaria a forma como o Flamengo vinha sendo gerido, principalmente no futebol.

Luiz Eduardo Baptista, o Bap, atual presidente do Flamengo. Imagem: Reprodução/Globoplay

Segundo Marcelo Pizzi, diretor e roteirista da série, o objetivo era “criar curiosidade a partir dos bastidores e fazer os rubro-negros — assim como outros torcedores — entenderem os principais motivos da reestruturação econômica do clube”. Por conhecer a história e ter acompanhado a reestruturação do Flamengo em detalhes, posso dizer que o objetivo foi alcançado pela metade — como se um quadro fosse exposto ao público apresentando apenas a moldura.

Informações técnicas sobre o documentário:

Nome: A Reinvenção do Flamengo
Episódios: 4
Direção: Marcelo Pizzi
Roteiro: Marcelo Pizzi, Gustavo Palmeira
Ano de lançamento: 2025
Plataforma: Globoplay

Imagem de capa: Reprodução/Globoplay

Por Tulio Rodrigues (@PoetaTulio)

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