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Contra a elitização do futebol – A nova maneira de torcer

Domingo é o dia perfeito para o futebol.
Geralmente, o brasileiro está em casa, descansando de mais uma semana de trabalho — e nada melhor do que assistir a um jogo do seu time com o filho, com os amigos, com a família…

– Pai, pai, vamo logo, o jogo vai começar.
– Pai, pai, quando cê vai me dar a nova camisa do Flamengo da Adidas? Eu quero as duas!
– Pai, pai, o Wallim falou que traz o Kaká se o Flamengo tiver mais 50 mil sócios do Nação Rubro-Negra. Quando a gente vai fazer o nosso?

Esse deve ser o típico diálogo do filho que herdou do pai a paixão pelo futebol, a fidelidade e o amor pelo seu time de coração. Na minha época, me bastava ver o jogo — e nem precisava ser no estádio. Bastava qualquer caixa de madeira em que estivessem aqueles 11 homens correndo com a camisa mais linda que já vi na vida. Nem me importava a marca. O que importava era ser a camisa do Flamengo. Depois, tomei conhecimento de que se tratava do Manto Sagrado.

Hoje, a linguagem do futebol é outra: ingresso virou ticket, estádio virou arena, arquibancada virou cadeira retrátil, a bola é laranja, acabaram com a geral, com o fosso, e a camisa da moda é Adidas. O pior é que as crianças já conhecem tudo isso e almejam ter. Hoje, elas não brincam de bola na rua; jogam Xbox, PlayStation e Candy Crush no Facebook. E, quando se fala de Flamengo, só se fala disso.

Cresci aprendendo que o Flamengo sempre foi o time do povo: do pobre, do rico, do artista, do pedreiro, de todo mundo… Quando fui ao Maracanã pela primeira vez, aos 11 anos de idade, vi pessoas pedindo dinheiro para comprar ingresso, pessoas sem camisa, de sandália, de todos os jeitos — só para ver o Flamengo.

Passaram-se dezessete anos desde a primeira vez que fui ao Maracanã, e, ao que parece, querem acabar com o lazer mais democrático do cidadão das classes D, C, B, A… Um lugar onde se misturavam pessoas de todas as classes! Agora, querem padronizar e elitizar, dando o privilégio a uma só classe, a um só lado da sociedade, de poder assistir ao seu time no estádio com a sua família, comprar camisa e demais produtos oficiais do clube.

Hoje, para estar “na moda”, o cidadão tem que ser sócio-torcedor, ter a recém-lançada camisa do clube e ir ao estádio. Só que falar é bem mais fácil do que fazer. Vamos ilustrar com um pai que ganha, em média, R$ 1.200,00 por mês. Esse pai resolve adquirir dois programas de sócio-torcedor: um para ele e outro para o filho. R$ 40,00 cada — mais em conta — e ele já compromete R$ 80,00 por mês com o time. A nova camisa do Flamengo custa R$ 199,90 (adulto) e R$ 179,90 (infantil). Só em camisa, o pai gastou R$ 379,80.

O sócio-torcedor dá direito a 50% de desconto no ingresso, e ele compra o de R$ 60,00, porque é mais em conta. Os ingressos para ele e o filho são mais R$ 60,00 a menos no bolso. Num mês agitado como esse (com camisa recém-lançada e o time jogando em outros estados), ele vai desembolsar R$ 519,00 só para acompanhar o seu time como manda o figurino. Nem vou contar aqui o quanto ele vai gastar com passagem, alimentação etc.

Vamos tirar as camisas, pois elas não são despesas recorrentes. Só com o sócio-torcedor: R$ 80,00 + três jogos no mês a R$ 60,00 cada. Essa brincadeira dá R$ 280,00, fora as demais despesas — e esses R$ 280,00 pesam ainda mais para o cidadão que tem, no contracheque, um salário mínimo. Está caro torcer!

Pode parecer bobagem, mas quem tem filho — e já foi uma criança apaixonada por futebol — sabe do que estou falando. Futebol é coisa séria! E estão afastando dos estádios as pessoas que só têm como lazer a ida ao certame para ver seu clube com o filho, com a família…

Claro que pondero muitas coisas em termos de modernização, mas há um quê de elitização injustificável — não só no Flamengo, mas no futebol em geral. Os engravatados cartolas devem saber que o futebol vai muito além do gol e dos noventa minutos. Vai além disso. Essa comparação do futebol com teatro da Broadway não tem nada a ver. Explica para uma criança o sentido da obra de Shakespeare e suas peças, para ver se ela vai entender… Diferente do futebol, do amor pelo clube, da fidelização de um amor, de uma paixão.

Nunca chorei no teatro. Mas já chorei no estádio pelo Flamengo. Catei moeda para ir aos jogos, numa época em que a geral custava R$ 3,00 — e eu nem conseguia ver o jogo direito. Mas eu estava lá! Ao lado do meu Flamengo, num apoio incondicional! Isso tem preço?

Parafraseando Herivelto Martins, em Nega Manhosa, belíssimo samba, vejo que hoje é impossível a nega fazer a feira, jogar no bicho e ainda deixar troco dos cinquenta “dinheiros” para o marido ir ao Maracanã:

Deixei embaixo do rádio uma nota de cinquenta
Vai à feira, joga no bicho
Vê se te aguenta
Economiza, olha o dia de amanhã
Eu preciso do troco
Domingo tem jogo no Maracanã
Do bate-bola sou um fã

Resposta do pai ao filho:

– Filho, o papai já tá indo. E camisa nova, só se passar de ano! Por enquanto, vai usando a do papai, que também é Adidas — e é da época do Zico. Vale mais que essas aí. E, falando em Wallim, eu quero é cobrar dele o time campeão do mundo que ele prometeu na campanha. Li no jornal, na eleição…

– Vamos correr porque o Bar do Zé vai lotar hoje. É clássico, filhão!
MEEENGO, MEEENGO, MEEENGO!!!

P.S.: Esta crônica não é uma crítica à diretoria do Flamengo, mas sim ao sistema do futebol brasileiro. O Flamengo é usado como exemplo porque é o meu clube — e nada melhor do que ele para me ajudar a ilustrar. Espero que olhem para o todo, e não só para alguns. Fico feliz por aqueles que podem bancar todos os gastos que o futebol exige hoje. Mas, e os que não podem? Extinguem eles do estádio? Eles não podem mais acompanhar o time? Querem amputar, de alguns, talvez a única coisa que lhes resta!

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